Segunda parte do conto Café, publicado no dia 3 de janeiro.
A primeira vez em que fui àquela padaria, estava aborrecido e irritadiço; no meio de uma briga com minha irmã caçula, ao telefone. Lembro-me de tentar convencê-la a voltar para a casa dos nossos pais, pois ela finalmente rompera com o namorado, o responsável por causar o desentendimento na família. Mas ela era orgulhosa demais e eu não sabia como fazê-la mudar de idéia. A conversa foi bastante desgastante e eu me vi contrariado ao desligar o aparelho.
Nem me lembro por que havia entrado naquele lugar; acho que só queria um local diferente daqueles que sempre freqüentava, para pensar um pouco, olhar uns papéis... Enfim, queria uma relativa tranqüilidade que os locais habituais não trazem, por sempre estarem repletos de gente conhecida. Acabei entrando naquela pequena padaria por impulso.
Estava pensando sobre a discussão, quando levantei o olhar e me deparei com um par de olhos curiosos. Ela logo desviou o olhar, um pouco embaraçada. Um estranho interesse me invadiu. Chamei-a:
— Com licença! Você poderia me servir um café?
Ela pareceu assustar-se com minha voz; devia estar tão distraída quanto eu. Tive vontade de conversar sobre isso, mas suspeitava ligeiramente de que ela não encararia favoravelmente meu estranho interesse.
— Certamente. Só um minuto, sim?
Como não a vira, logo ao entrar? Deveria estar mesmo bastante distraído, ou talvez precisasse ir com urgência ao oculista, ajustar o grau dos meus óculos. Além de linda, ela possuía um sereno ar de desafetação ou mesmo desambição, como se negasse toda a malícia do mundo; como se afirmasse que nenhum problema podia ser importante o suficiente para afetá-la. Trouxe-me uma paz inesperada. De alguma maneira, lembrou-me minha irmã. Não por se assemelhar a ela, mas pela expressão pensativa com que parecia falar consigo mesma, enquanto fazia o café. Lembro de minha irmã passeando pela casa, sonhando com alguma coisa. Eu gostava de observá-la, pois era capaz de ler nos seus olhos cada palavra que lhe passava pela cabeça. Bem, isso era antes. Agora, minha irmã crescera e tornara-se complicada demais... Como qualquer mulher. Senti meu humor piorar outra vez.
— Por que tudo é tão complicado? — explodi, sem pensar.
Não pretendia fazer aquela pergunta em voz alta e vi que a bela garçonete também não esperava por aquele desabafo repentino.
— Desculpe — falei, um tanto quanto envergonhado. — Você não tem nada a ver com isso. Eu estou realmente aborrecido hoje.
— Não, tudo bem.
Eu não estava agindo com muita lógica. Talvez ela pensasse que eu não batia bem da cabeça. Pensando com franqueza, eu também não estava muito certo da minha sanidade.
— Acho que estou enlouquecendo — acabei dizendo. — Às vezes me pego falando sozinho. Agora mesmo, estou falando sozinho, pois não acredito que você esteja mesmo interessada ou que esteja prestando atenção ao que eu digo.
Até agora não sei por que expus tudo aquilo; talvez eu só quisesse desabafar. Mas ela me surpreendeu, respondendo:
— Ora, eu estou, sim. — E sorriu.
Obviamente não acreditei nisso; ela estava apenas tratando bem um cliente.
— Você é muito gentil.
— Obrigada.
Então, ocorreu-me que ela devia ouvir muitas histórias, trabalhando naquela padaria. Devia estar acostumada com malucos como eu. Quem sabe conseguiria me distrair?
— Quer dizer que estava mesmo prestando atenção?
— Acho que você está se sentindo sob pressão. Talvez um café não seja uma boa idéia. Não prefere um chá?
— Não gosto de chá. Prefiro uma boa conversa enquanto tomo café. Mas eu aceito um biscoito.
Ela podia se recusar, dizer que estava ocupada; mas não o fez.
— Como quiser.
Acomodei-me melhor no meu banco.
— Você não acha a vida complicada?
— Eu não disse isso.
— É, acho que não.
Mas ela parecia tão despreocupada que eu seria capaz de acreditar, se ela me afirmasse o contrário. Então ela me surpreendeu outra vez, olhando em meus olhos:
— Que desilusão tão grande o fez desacreditar da vida dessa maneira?
Aquilo traía um certo interesse ou era um julgamento? Não pude deixar de rir; ela tinha uma curiosa opinião sobre mim. E totalmente errada.
— Não é o que você está pensando.
— Como pode saber o que eu estou pensando?
— Você certamente está pensando que eu tenho problema com mulheres.
— E não tem?
Certo, eu tinha razão. Ela havia me rotulado e me atirado na sessão dos mulherengos superficiais. Não que eu não gostasse de mulheres, mas meus problemas atuais não tinham absolutamente nada a ver com isso.
— Não. Bem, não nesse sentido.
— Ah... Está bem.
Ela me serviu o café e depois se afastou para atender outro cliente. Fiquei com a nítida impressão de que ela não acreditara muito no que eu havia dito. Talvez isso se devesse à minha hesitação, quando me dei conta de que minha irmã, afinal, era mulher. Mas, ora, eu não me referia ao tipo de relacionamento em que ela estava pensando. Claro que ela tinha direito à sua opinião; mas, droga, eu não queria deixá-la com essa impressão de mim.
Olhei o relógio e percebi que estava atrasado para o trabalho. Esperava apenas tomar um café, antes de encarar os benditos documentos por mais um dia, mas terminei me demorando mais do que pretendia. Quanto à errônea opinião da simpática e fascinante garçonete, teria que ver isso depois. Como ela não retornava, deixei uns trocados em cima do balcão, juntei os papéis na pasta e parti.