quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O Guia do Mochileiro das Galáxias

Dia desses, mandei um livro de aniversário, comprado num site da internet, para um amigo meu de outra cidade. Bruno, meu amigo, veio me agradecer o presente. Eu fiquei aliviada por saber que o livro tinha chegado ao seu destino, pois eu achava que estava demorando demais.

— Oi, Ma! Obrigada pelo presente!

— Puxa! Até que enfim, pensei que não chegaria mais.

— E não chegou, na verdade.

— Hein?

— Aconteceu uma história muito estranha até o livro chegar aqui.

— Não chegou aí? Como assim, que absurdo! Vou reclamar lá.

— Espera, escuta a história:


"Aparece hoje aqui na porta de casa um cara numa bicicleta e só estava o Fred* e o André* aqui. O Fred, todo desconfiado, vai atender, e o cara pergunta:

— Aqui é a rua X?

— É sim, por quê?

— Tem um Bruno aí?

— Tem, mas ele não está.

— É que tem um pacote aqui pra ele.

Eram 21h00. O Fred vai lá na porta, nem leva a chave para não abrir o portão, e pergunta se tem o nome completo, para ter certeza de que é o Bruno daqui mesmo.

Daí o cara:

— Ah sim, peraí. Segura aqui. — E passa um livro pro Fred segurar, enquanto ele lê o nome no pacote. O Fred nem olha qual era o livro, preocupado com o que o cara vai fazer.

— “Bruno de Tal”.

— Ah, é esse mesmo.

O cara, então, passa o pacote, que já estava aberto e explica:

— Então, foram entregar esse pacote na minha casa.

— Onde você mora?

— Na rua Y — que é outra rua daqui, cujo nome não tem nada a ver. — E na minha casa também tem um Bruno. Ele abriu o pacote e só depois percebeu que não era pra ele.

E o Fred abismado. O cara continuou:

— Então, quando o Bruno chegar, você dá três avisos pra ele:


1. Quem entregou o pacote era um vogon muito burro... Se bem que eles já são burros mesmo... Mas esse era muuuuito burro.

2. Quando eu vi o pacote, eu pensei que era um aquário, mas era um livro.
3. Quando ele for viajar, não se esqueça de levar a toalha.


— Tá. Qual é o seu nome?

— Eu sou o Carlos*. Você entendeu os recados?

— Sim... Vogon burro, pensou que era um aquário e não esquecer a toalha.

Depois que o Fred pegou o livro de volta é que ele viu o nome: “O Guia do Mochileiro das Galáxias”. O cara posicionou a bicicleta e acenou:

— Até mais! E obrigado pelos peixes."


Eu pensei bem e decidi que não vale a pena ligar para reclamar. Como disse Bruno, valeu a diversão.


* Os nomes foram trocados por motivos que não vem ao caso.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O acordar


Que lugar é este? Onde está a minha cama, meu quarto, minha casa? Meu despertador, onde está meu despertador, que não me acordou? O sol já está quase a pino e nem sinal do barulhinho irritante. Céus, perdi a hora! Será que me esqueci de programá-lo para tocar? É bem possível, ando tão distraída ultimamente... Tenho que levantar para fazer o café do meu marido. Onde será que ele está? E que raios de lugar é este?

É bonito, sem dúvida, com todo este verde em volta e este céu azul. Parece cenário de sonho. Um pouco claro demais para o meu gosto; dá a impressão de que se está mais perto do sol. Mesmo assim, não é quente. Nem frio. É até bem agradável, bem mais do que aquele meu apartamento abafado e bolorento. Eu ia começar a pintar as paredes, qualquer dia desses; mas as costas doem tanto que ficava adiando, adiando... Curioso, não sinto mais dores nas costas. Poderia começar uma reforma inteira agora mesmo, se conseguisse descobrir em que direção fica a minha casa. Mas esse gramado todo, não sei; acho que deve ficar a uns bons quilômetros da cidade em que eu moro.

E essas pessoas todas me olhando? Deve ser por causa da minha gravidez avançada... Gravidez... Meu Deus, onde está a minha barriga? Meu bebê! Até ontem estava aqui! O que aconteceu? Eu o dei à luz e não me lembro? Parti e o abandonei lá, sem nem conhecê-lo? Como pude fazer isso? Não posso ficar aqui, ele precisa de mim! Quem vai cuidar dele, dar-lhe comida, trocar a fralda? Meu marido não vai conseguir dar conta de tudo sozinho. Não, não posso ficar aqui! Não, por favor! Alguém me leve de volta, eu preciso voltar! Preciso voltar!

Não posso chorar; a vista fica turva e eu preciso encontrar o caminho de volta. Cadê as estradas deste lugar, os ônibus, os carros? Há alguém a quem pedir carona? Ei, vocês! Por que estão todos sorrindo para mim? Não posso ficar aqui, não pertenço a este lugar. Tenho pessoas de quem cuidar, lá onde morava. Coisas... Várias coisas. Coisas importantes. Cuidar do meu bebê recém-nascido. Voltar para casa. Quero voltar. Para a minha casa...

... Estranho; olhando agora, sinto que conheço este lugar. Parece que já estive aqui, alguma vez, há muito tempo. Que sensação estranha. Parece... paz. Nunca senti isso antes. Talvez bem jovem, quando ainda não tinha tantos problemas... Não há mais problemas. Sem mais dores ou despertadores. Eu estou em paz. Egoísmo meu, estar em paz enquanto tantas pessoas sofrem com a minha partida. Eu sei, eles vão conseguir sobreviver, de alguma maneira. Eu sei. Eu... Só espero que fiquem bem.

Do meio da multidão que sorria para mim, um homem de olhar belo e terno aproximou-se e me abraçou. Com lágrimas nos olhos, reconheci aquela voz profunda, quando Ele falou:

— Seja bem-vinda, minha filha.


Imagem: stock.xchng


Texto para a Blogagem Coletiva de setembro proposta pelo blog Vou de Coletivo!, com o tema "Dormir aqui e amanhecer em outro lugar".

sábado, 5 de setembro de 2009

No meio do caminho tinha um galo

Na antiga casa em que eu morava, quando criança, havia várias árvores frutíferas, espalhadas pelo terreno enorme. Uma delas, a de manga rosa, que eu plantei quando bem pequena, era uma das minhas preferidas. As mangas dela eram as melhores. Pelo terreno, ainda havia um campo de vôlei, um parquinho, um jardim, uma casa de bonecas e… um galinheiro. Por alguma coincidência do destino (ou espiritice-de-porco de quem planejou), o pé de manga rosa ficava dentro desse último: do galinheiro.

A história começou quando, da janela do meu quarto, eu a avistei: enorme, suculenta, madurinha. A manga. Ela estava num galho meio alto, mas não seria difícil subir e pegar. De fato, subir não foi difícil; já descer… Saí pro quintal com a idéia fixa de colhê-la custasse o que custasse, já lembrando que a mangueira ficava no meio do bendito galinheiro. Bom, eu não tinha medo de galinhas, afinal; praticamente havia crescido no meio delas, por causa daquele galinheiro, que meus pais tinham inventado de manter ali.

Entrei no território das galinhas, então. Elas me olharam, cacarejaram e se afastaram. Galinha é um bicho burro e eu não vou fingir que acho que me reconheceram. Ainda bem, porque certa vez, no auge da minha ingenuidade infantil, eu despejei o resto do meu almoço pra elas comerem e elas, obviamente, comeram. Era frango desfiado.

Continuando, fui em direção ao primeiro galho da árvore e dei o impulso inicial para subir. Era aquele tipo de galho, que toda árvore tem, que você obrigatoriamente tem que pisar nele para subir ou descer. Então, eu fui subindo, subindo, até alcançar a minha desejada manga. Peguei e fui começando a descer, galho por galho, até chegar naquele galho inicial. Foi quando me deparei com um galo, empoleirado nele, me olhando com cara de poucos amigos.

You wanna fight?

Galinhas são geralmente inofensivas, a não ser que você queira pegar um ovo ou os filhotes delas. Mas galos são bem pouco pacatos. Este, especificamente, tinha a fama de ter ferido todos os machos que já pintaram por aquele galinheiro e de ter dado uma surra nos gatos que porventura entravam para comer os pintinhos. O que seria de mim, pobre criança sem esporões, encarando uma criatura como aquela? Só me restava esperar que ele saísse do galho, para que eu pudesse descer e comer minha manga.

Foram se passando os segundo, minutos… E minutos para uma criança é bastante tempo, ainda mais em cima de uma árvore. Meus pés começaram a adormecer, de me equilibrar naqueles galhos cheios de titica, e o galo não cedia terreno. Olhava-me com a mesma cara, como se me desafiasse pra briga. Comecei a me desesperar; percebi que ele não ia sair dali. Vai ver, ele tomara conhecimento do meu crime que provocara o canibalismo entre os seus e quisesse me punir por aquilo. Comecei a tremer de medo e, quanto mais me agitava, mais ele parecia ficar satisfeito.

Até que não aguentei mais: analisei a altura a que estava e calculei o impacto da queda. Era alto, mas era melhor que encarar o rei-galo. Fechei os olhos, pulei e caí sentada no chão batido, melecando minha roupa de titica de galinha. Mas não me importei, saí correndo o mais rápido que pude das terras do reino.

Quando fechei a porteira, arrisquei uma última olhada pro sujeito. Ele ainda olhava para mim, agora com o ar de “escapou, né, covarde?”. Covarde, sim, mas inteira. E, como que para comprovar minha teoria de que ele só estava montando guarda por minha causa, ele farfalhou as asas e desceu. E saiu andando tranquilamente em direção aos fundos do galinheiro.

E eu? Eu fui curtir minha preciosa manga. Estava uma delícia.


Imagem: stock.xchng

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Em frente

Todos os dias, a caminho de casa, passava pela frente da casa dele. Era uma bonita casa e ela a conhecia bem, por fora e por dentro, tantas foram as vezes em que estivera lá. Lançava um olhar por puro hábito e, quando percebia que estava novamente olhando naquela direção, desviava o olhar, praguejando. Quase sempre ia para casa sozinha, então passava o resto do caminho inteiro amaldiçoando-se.

É um costume bem comum, o de olhar na direção de lugares conhecidos. Você deve fazer isso e eu confesso que também faço. É como um sinal de reconhecimento. Mas, para esse lugar específico, ela não gostava de ficar olhando. Para ela, era como um sinal de fraqueza, como se desejasse vê-lo. O fato é que realmente desejava vê-lo, mas não podia admitir, nem para si mesma. Tudo estava acabado e já há tanto tempo. Não tinha sentido ficar desejando ver uma pessoa que já não mais fazia parte da sua vida. Nem deveria.

Afinal, o que faria se o encontrasse? Enfrentaria e diria tudo o que estava engasgado? Viraria o rosto, ignorando? Não via vantagem em nenhuma das opções. Estava acabado, afinal. Por que ficava se martirizando, remoendo lembranças passadas, alimentando esperanças vãs? Gostaria de não precisar passar por aquela rua, mas então teria que pegar um caminho mais longo e esquisito. E por uma bobagem.

Como de hábito, resmungou baixinho e começou a interminável sessão de maldições a si própria, quando se lembrou de que, desta vez, não estava indo para casa sozinha. Um amigo do trabalho a acompanhava.

— Hein? Falou alguma coisa, Elisa? — seu acompanhante perguntou.

— Não, não. — Ela sentiu-se um pouco constrangida. — Desculpe, estava só pensando alto.

— Ah.

De repente, o amigo apontou algo do outro lado da rua, o oposto de onde estavam os pensamentos dela, e disse, sorrindo largamente:

— Olha lá, Elisa. Não é lindo?

Era um muro. Quando ela começava a se perguntar o que teria de tão interessante num simples muro, ele puxou-a pela mão para atravessar a rua. O muro estava cheio de desenhos em grafite e inscrições. Encantada pelas cores, ela começou a se perguntar como nunca vira aquele muro antes. A resposta formou-se claramente diante dos seus olhos, na forma de uma citação em letras desenhadas, escrita no muro: “Enfrente sem olhar para trás.”

Deste então, todos os dias, a caminho de casa, Elisa admirava um muro de inspirações. E não mais olhava para trás.


Foto por Kaka