sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Uma última canção


Como um pássaro preso na gaiola, um coração encolheu-se em seu ninho e esqueceu-se de viver. Aprisionado num sentimento único, que lhe cortou as asas e calou-lhe a voz. Impossibilitado de fugir, ele aprendeu a ser digno apenas de seu frio cárcere e acomodou-se em seu canto; incapaz de cantar.

Quem o visse antes, não o reconheceria então. Era livre, era alegre. Tinha a vida de uma andorinha, que acorda a cantar e dorme satisfeita com o belo dia em que viveu. Tinha o sorriso iluminado, como o sol que o despertava ou a lua que lhe acalentava o sono. Dormia como uma criança protegida. Sonhava como uma mulher apaixonada. E assim acordava novamente, para viver mais um lindo dia. Mas não para sempre, pois nada dura para sempre.

Ele não morreu. Antes preferisse morrer, porém não tivera essa sorte. Foi num certo dia alegre, como qualquer outro, em que ele acordou feliz e dormiu ainda mais feliz. Porém aquela felicidade lhe era estranha; quem sabe não lhe pertencesse. E tiraram-lhe a tal felicidade. Descobriu, depois, que uma felicidade tirada não levava apenas aquela parte excedente; roubava-lhe a vida. Não pôde mais cantar. Não conseguiu mais emitir uma nota que não destoasse ou semitonasse. Daquele dia em diante, até a brisa do mar desafinava. E sem música, ele se viu inutilizado, apenas sobrevivendo, numa vida que não era mais a sua.

E, enfim, flutuando sobre águas cristalinas, sinto lágrimas caírem. Como um riacho correndo para o mar, as gotas perturbam a água, fazendo pequenas ondas e ruídos que acabam por me acalmar. Meus lábios ressecados sentem um gosto salgado; não sei se das lágrimas ou do mar. Sinto-o sossegar um pouco. Estranho; parece que o sinto mais leve. Fecho os olhos, respiro o ar salgado. E sinto meus dedos acariciarem as cordas douradas uma por uma, fazendo-as vibrarem, num som transparente e claro, como jamais antes ouvido por mim. E, inspirada pelo novo som da vida, eu abro os olhos para o mundo. E canto uma canção. A última dessa tristeza que teve fim.


* Veja também o projeto Palavras de Papel. Mais cartas à vista.

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