quinta-feira, 28 de junho de 2018

Sobre vida

Encerrei mais um capítulo do romance, ou o primeiro esboço dele, sem saber que horas eram. Não era noite mais, apesar de ainda ser escuro. As noites estavam cada dia mais longas, invadindo o tempo das manhãs. Regulando o sol, que, quando resolvia aparecer, parecia nunca estar completamente acordado. Não podia censurá-lo; devia ser difícil despertar de uma madrugada como aquela.

Deixei os olhos vagarem por alguns momentos para fora do papel: a mesa de madeira escura, o copo de cerveja pela metade, as prateleiras de bebida. Evitei apenas o olhar do moço de trás do balcão. Ele já havia polido todas as garrafas da estante, limpado o balcão, as mesas, e lavado todos os copos. Não me importei.

Mais um papel em branco me aguardava, impaciente. Faltava algo, algo importante, algo que eu tinha deixado de escrever. O papel o exigia, em seu branco imponente e gélido. Tomei mais um gole da cerveja, que apesar de fria, oferecia mais calor que o papel.

As pessoas eram bonitas, sempre bonitas, nas minhas histórias. Seria isso o irreal? Pessoas comuns não são bonitas; têm narizes grandes, olhos pequenos, celulite, acne, pelos. Mas penso que nós somos mais do que as partes que nos formam. As pessoas são bonitas porque outras acham que sim, porque o conjunto faz sentido; não porque fazem parte de qualquer padrão.

O cenário também não podia ser; era tão real quanto o bar em que eu estava, cujo clima emprestei a algumas cenas. Escolhera também a trilha sonora perfeita. Mas não bastava. Faltava a história que sai do papel e dança e caminha sozinha. A minha história não caminhava sozinha, visto todo meu esforço daquela noite para que engatasse uma caminhada meio manca. Não engatou e eu quis amassar tudo e jogar pela janela. Ou na cara do moço do balcão.

Cansei de evitar seu olhar e encarei-o. Para minha surpresa, não tinha a expressão carrancuda de quem não via a hora de fechar o bar. Em vez disso, ele sorriu para mim. Um sorriso compreensivo. E voltou a seus afazeres, como se ainda não tivesse terminado.

Há quanto tempo não via um sorriso? Enterrada em mim mesma, há quanto tempo não via nem sequer um rosto amigo? Por isso tinha ido ao bar, por isso não queria voltar para casa, sufocada na solidão e a escuridão do meu abajur. Histórias eram sobre vida. Palavras eram seres vivos. O silêncio as espantava e o vazio as matava. Nada poderia vir de nada.

Era o que havia de errado com minha história. Faltava vida. A minha.

"You're walking meadows in my mind,
Making waves across my time

What a strange magic"

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Imagem: Flick - Creative Commons
Música: Strange Magic - ELO

Um comentário:

Ana disse...

Nossa, que bonito.
Algumas vezes estamos tão focados no problema que não damos tempo para a vida acontecer. Amei seu conto.

Apartamento 29