terça-feira, 10 de maio de 2016

Primeiro capítulo - Livraria

Já passava das cinco e meia, quando a porta da livraria abriu. Uma única olhadela de canto de olho foi o máximo de atenção que ele prestou à recém chegada, ocupado que estava com a organização de alguns livros que os clientes da tarde haviam deixado fora de lugar. Tinha uma rotina um tanto quanto rígida nos finais de tarde, antes de encerrar o expediente: pegar todos os livros de cima do balcão e espalhados pelos cantos da livraria, arrumá-los de volta no lugar e depois atualizar o estoque de acordo com as vendas do dia. Não era nada muito trabalhoso, visto que o estabelecimento não era tão grande, nem muito tumultuado. Para encerrar, antes de apagar as luzes, ele escolhia um livro qualquer e o levava para ler em casa.

Àquela hora da tarde, alguns clientes chegavam de seus trabalhos, procurando por algum presente de última hora; ou mesmo alguns errantes, que entravam ali por acaso ou curiosidade. A cliente que acabava de entrar parecia se enquadrar no segundo grupo. Não parecia ter pressa, então ele não se preocupou em ser solícito e eficiente. Optou por deixá-la à vontade.

Terminando de colocar o último livro no lugar, ele voltou ao balcão e ligou o monitor para conferir a planilha do estoque. Já eram seis horas, de acordo com o relógio que aparecia no canto da tela. Gostaria que essa última cliente não se demorasse muito perdida na loja e se decidisse logo a comprar algo ou a encontrar o seu caminho em outro lugar, através da porta de saída.

Enquanto esperava o programa abrir e começava a considerar seriamente trocar o velho computador por um mais ágil, apoiou os cotovelos no balcão e seu olhar caiu pela primeira vez na cliente perdida. 

Nunca a tinha visto por ali antes; registrara este fato logo que ela passou pela porta. O que só percebia agora era que ela não parecia feliz. Após observá-la mais alguns segundos, ele desviou o olhar, subitamente constrangido ao perceber o quanto sua impressão inicial havia sido eufêmica. A moça tinha lágrimas banhando sua face muito vermelha. “Não parecia feliz”, ele disse? Ela parecia, sim, completamente arrasada.

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Mais um primeiro capítulo de uma história que eu nunca continuei. O motivo desta é mais simples: comecei a escrever no meio de um hiato criativo e sem a mínima ideia do plot. Acabou que o hiato me venceu e não tinha nenhum fio para seguir. O engraçado é que, lendo agora esse início, percebi que parece demais com o primeiro capítulo de um livro que eu acabei de escrever recentemente.

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Essa é uma blogagem coletiva de abril do grupo Blogs Up, com o tema "Primeiro capítulo da história que você não terminou (e o motivo de ter abandonado)".

terça-feira, 3 de maio de 2016

Flores


Naquela manhã, foram tulipas. Tulipas brancas, frescas e totalmente fora de estação. Elisa não entendia tanta coisa ali que o fato de alguém ter encontrado tulipas num dia como aquele chegava a ser irrelevante. O que realmente a deixava admirada e confusa era esse alguém saber que ela adorava tulipas brancas mais que qualquer outra coisa.

Precisas como um relógio, as flores sempre chegavam pontualmente às sete. E, desde que começaram, nunca pulavam um dia. Ontem, vieram rosas brancas; anteontem, vermelhas. Sempre foram rosas, até aquele dia. Se ela se esforçasse, poderia até pensar em um punhado de pessoas que lhe pudesse ter feito aquele agrado, mas terminava sem se decidir por nenhuma. E essa era sua grande frustração: era incapaz de determinar com clareza quem poderia ser esse seu admirador.

— Mais flores, hein? — perguntou-lhe o seu vizinho de porta, ao chegar carregado de compras e vê-la parada no corredor, o ramalhete nas mãos.
— Sim, tulipas.
— Estou vendo. São iguais àquelas de plástico que ficam em cima da sua mesa.
Não lhe havia ocorrido tal semelhança. O vizinho encontrou as chaves da própria casa no bolso e enfiou na fechadura.
— Então, ainda não descobriu quem mandou?
— Não. É impossível. Pensei em todas as pessoas que conheço, mas nenhuma delas demonstra nenhuma atenção especial comigo.
— Nenhuma?
— Nenhuma.
— Bom, com certeza você está deixando escapar alguém.
— Talvez. Quem sabe eu sequer conheça essa pessoa.
— Você acha?
— Acho. Não sei. Bom, preciso entrar agora.
— OK. Qualquer coisa, sabe que é só chamar.
— Sei, sim, obrigada. Você é um amigão. Não sei o que faria sem você.
Disse isso e entrou.
A partir daquele dia, Elisa não recebeu mais flores.

Imagem: © Corbis
Texto postado em 2009